* Tarso Genro
Os últimos trabalhos e conferências do professor Manuel Castells, cuja síntese brilhante foi apresentada numa conferência em Lisboa (05.12.15), com o título que pode ser traduzido (tenho o texto somente em inglês) como “A respeito da nova democracia na idade da informação: pensando o impensável”, tratam da erosão do modelo institucional da democracia representativa e da falência dos partidos como mecanismos de intervenção política dos representados. É a época em que as informações e diálogos, lutas e acordos em rede, tonaram envelhecidos os mecanismos tradicionais de disputa política da democracia moderna.
Estes trabalhos tratam da crise dos sistemas políticos na democracia social, que transitam de um projeto humanista de coesão social mínima – dentro do capitalismo – para uma espécie de barbárie fundada na xenofobia, na intolerância e no “apharteid” social, também dentro do capitalismo, mas já na decadência democrática. Este “trânsito”, é óbvio, se reflete de forma diferente em cada país de democracia política, de acordo com a suas peculiaridades sociais e econômicas.
Numa entrevista publicada em 2015, no âmbito de uma das edições do “Fronteiras do Pensamento”, o professor Castells fez uma síntese lapidar desta crise: “…os movimentos em rede são de um novo tipo e se formam a partir de ideologias diferentes e com diferentes motivações. São um sintoma da crise da democracia atual, dominadas por partidos a serviços deles mesmos e não dos cidadãos, eleições controladas por dinheiro e por meios de comunicação, corrupção sistêmica de todos os partidos políticos em quase todos os países. Se houvesse vontade de participação política e democrática por parte das elites, a comunicação em rede oferece enormes possibilidades de incrementar a participação cidadã, ao invés de reduzir a democracia a um voto midiatizado a cada quatro anos.”
Este processo de decadência, apontado por Castells, atinge, em maior ou menor grau, todas as formações políticas, mas gera armas políticas fulminantes, quando uma parte destas formações (a mais corrupta e comprometida do que qualquer outra) com apoio ostensivo do oligopólio da mídia, torna-se dona das versões e do poder. E assim o instrumentaliza, de um lado, para eliminar os traços positivos de democracia social, que estavam em consolidação e, de outro, para salvaguardar os seus, das investigações criminais e dos próprios processos contra a corrupção.
Reforçar o domínio e limitar a democracia – segundo Castells – é a resposta que os estados, como o Brasil e Espanha, estão dando – com a utilização de formas agressivas de controle da formação da opinião – aproveitando o fato de que os cidadãos “querem a democracia, mas não essa”. Daí, para o esvaziamento planejado do Estado de Direito Democrático tradicional, através da “exceção” – como se vê no Brasil – é um passo bastante fácil, instrumentalizando os políticos sem princípios de vários partidos, para realizar um “ajuste”, não para melhorar as instituições ou reformar o sistema político. É o que ocorre, por diferentes formas e canais, tanto no Brasil como na Espanha.
Para compreender o que ocorre em nosso país, devemos lembrar que as declarações do atual ministro da Justiça, que antecederam a prisão desnecessária e arbitrária do ex-ministro Palocci, não podem ser desconectadas do que disse, recentemente, o juiz Moro, numa Conferência proferida aqui no nosso Estado. Ali ele afirmou com todas as letras que, para situações excepcionais de combate à corrupção, é necessária certa dose de excepcionalidade, para que o Poder Judiciário possa cumprir a sua “missão.” A “exceção” – na versão fascista da teoria do direito – se legitima a si mesma, como juízo do poder político, pois este é o “Magistrado da exceção”, como dizia Carl Schmitt. É ela, a exceção, que cria a suas próprias normas em “movimento”, ou seja, sem a obediência às responsabilidades dos Poderes, conferidos formalmente pela Constituição.
O engano, porém, que estes processos de exceção geram no senso comum, é dramático: faz as pessoas menos avisadas acreditarem que eles são utilizados, efetivamente, para combaterem a corrupção, quando, na verdade fazem isso apenas de forma parcial e seletiva: ela – a exceção – é sempre baseada num juízo político, logo sempre tens fins e objetivos políticos. Moro tem razão quando diz que “medidas excepcionais” são usadas para combater “situações excepcionais de corrupção”, mas a sua razão é incompleta, pois a exceção – como saída política de uma crise – pode ser manipulada, tanto para punir alguns corruptos, como para proteger ou salvar outros, bem como para manter perseguidos outros tantos, segundo o interesse do Juízo da exceção. É o que ocorre no país.
Os processos de exceção sempre ocorrem em momentos de decadência de um sistema político, mas, quando esta decadência se combina com uma unanimidade férrea dos meios de comunicação, articulados para varrerem das relações democráticas toda uma comunidade política – indeterminada, mas legitimada como parte do contencioso democrático – o que temos é um novo tipo de fascismo em andamento. Seu desfecho, às vezes, até mesmo foge da vontade dos seus protagonistas, mas ele pode, um dia, encontrar qualquer um na próxima esquina: a violência e a irracionalidade de processos deste tipo, quando consolidadas como comportamento “normalizado” na sociedade, não são seletivas. Foi o que ocorreu, na Argentina, de exceção em exceção – depois da volta de Perón – quando a selvageria das armas enterrou o que restava de democracia, como convívio civilizado dos contrários.