* Luciana Boiteux [1] e Rubens Casara [2]
O estudo do Poder Judiciário na ditadura civil-militar brasileira (1964-1988) nos auxilia na compreensão do momento atual do sistema de justiça no Brasil e sua relação com a democracia. O Judiciário brasileiro, especialmente por meio da Justiça Militar (mas não somente), teve marcante atuação no período autoritário, tendo sido instrumentalizado como “força”jurídica essencial para a legitimaçãoda ditadura.
Diferentemente de outros países da região, nos quais a repressão atuava fora dos marcos legais o Brasil construiu um arcabouço legislativo adaptado às necessidades de reprimir dissidentes e usou estrategicamente os tribunais militares para processar opositores políticos na forma de um aparato repressivo que visava neutralização da oposição política, ao mesmo tempo em que tentavamanter a aparência de “legalidade” (Anthony W. Pereira).
Nesse sentido, a Justiça Militar no Brasil teve sua competência alargada em 1965, pelo Ato Institucional no. 2, quando passou a julgar civis por crimes políticos, violando claramente o princípio do juiz natural, inclusive. Conforme se verificou , os juízes eram coniventes em sua maioria, sendo outros adaptados, tendo como exceções os formalistas e legalistas, muitos dos quais acabaram sendo expurgados pelo próprio regime, como foi o caso de três ministros do STF (e um do STM) aposentados pelo AI-5, além de outros casos punições a juízes de primeira instância, transferidos ou aposentados por conta de suas atuações nos processos.
Nesse sentido, o regime militar brasileiro, para se legitimar perante o público em geral (e a comunidade internacional) detinha controle, ainda que não absoluto, sobre o aparato castrense e seus magistrados. Nas sentenças, alguns juízes se expressavam como “soldados da revolução”que combatiamos “comunistas que queriam transformar o Brasil em uma ditadura”. Isso ocorria com mais intensidade na primeira instância, na qual atuavam oficiais de menor patente, mas também havia um alto grau de adesão e conivência com o regime ditatorial no Superior Tribunal Militar, formado por oficiais da mais alta patente. Além disso, documentos e informações da épocaapontam que os juízes estavam sujeitos a pressões, monitoramento e punições caso dessem decisões desfavoráveis aos interesses do regime.
Como parte do aparato autoritário, a Justiça Militar se omitia diante das denúncias de torturas contra presos políticos feitas em juízo, bem como muitas das decisões condenatórias eram baseadas em evidências obtidas sob tortura e não reproduzidas em juízo, o que violava princípios constitucionais e regra expressa do Código de Processo Penal Militar. Foram vários os casos de abusos de autoridade: além da tortura, a prisão preventiva era a regra (e durava mais tempo do que as penas previstas para o crime), além de violações de direito dos advogados, condenações por crime de mera opinião, dentre muitos outros direitos violados.
A integridade física dos presos era sistematicamente violada nos porões da ditadura, por meio da tortura, elemento essencial estruturação do sistema repressivo, sendoas confissões obtidas por este meio consideradas válidas pelos juízes nos processos. Além de não apurarem os crimes praticados pelos agentes da lei, ainda se admitiamnos processos como provas confissões obtidas mediante coação sem maiores questionamentos por parte dos juízes.O emblemático julgamento de réus chineses (barbaramente torturados) condenados a 10 anos de prisão sem provas, é um exemplo de julgamento baseado em suposições carregadas de revanchismo contra o presidente deposto. Nas sentenças, os juízes elogiavam a “revolução” (golpe) e puniam os réus por serem comunistas.
A partir dessa breve descrição da realidade da justiça na ditadura, poder-se-ia considerar que essas práticas autoritárias e violadoras de direitos só ocorriam durante períodos ditatoriais, mas não. Muitas delas continuam sendo prática cotidiana no sistema atual de justiça da democracia, como permanências autoritárias estruturais, ainda mantidas, mesmo que sob a égide de uma Constituição.
No imaginário democrático, o Poder Judiciário ocupa posição de destaque. Diante dos conflitos e da inércia do Executivo em assegurar o respeito aos direitos humanos, este Poder se apresenta como ente estatal capaz de atender às promessas descumpridas e de exercer a função de “guardião da democracia e dos direitos” (Antonie Garapon). A esperança depositada, porém, cede rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça, em especial do Sistema de Justiça Criminal, em garantir direitos. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário na democracia. Não raro, para dar respostas (ainda que formais) às crescentes demandas, este recorre a uma concepção política pragmática, utilizando-se de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, adotando práticas autoritárias para a manutenção da ordem.
Não obstante, na medida em que cresce a atuação do Poder Judiciário (ainda sem atender às expectativas geradas), diminui a ação política, naquilo que se chama de ativismo judicial. Esse quadro está a indicar um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade das agências estatais e ao crescimento do sentimento de desconfiança em relação à Justiça. Em outras palavras: hoje, percebe-se claramente que, no Brasil, o Sistema de Justiça tornou-se um locus privilegiado da luta política, o que torna a escolha dos Ministros dos tribunais superiores um ponto sensível (embora negligenciado) no processo de construção da democracia brasileira (democracia aqui entendida em seu sentido material, como efetiva participação popular na produção das decisõessomada ao respeito incondicional aos direitos fundamentais).
Por evidente, não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário brasileiro desassociada da tradição em que os magistrados estão inseridos. Verifica-se no processo de formação da sociedade brasileira as práticas observadas na Justiça. Em apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram destinadosaos filhos da classe dominante, sem estarem sujeitos a qualquer controle democrático ou popular, gerou-se um Poder Judiciário elitista marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista, constituída de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao conservadorismo.
Para além dessa tendência à conservação da tradição que acompanha o Poder Judiciário desde sua origem, há também o caráter ideológico do direito, a serviço do velamento da facticidade, em especial das contradições existentes na sociedade. Assim, se o texto legal, potencialmente conservador, é um evento que não pode ser ignorado pelo juiz, intérprete privilegiado que irá criar a norma para o caso concreto, reforça-se, ainda mais, o caráter conservador da atuação do Poder Judiciário, mesmo na democracia.
Note-se que o distanciamento em relação à população gerou em setores este Poder, mesmo entre aqueles que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública. Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais, como forma de legitimar a Justiça aos olhos da população, ainda que para isso seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento. Assim, não raro, juízes no Brasil passaram a priorizar a o que mais interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos e dos direitos.
O Estado Democrático de Direito, pensado como um modelo que surge com a finalidade precípua de impor limites ao exercício do Poder, deveria impedir violações a direitos como aquelas produzidas em estados autoritários. Aliás, a principal característica do Estado Democrático de Direito é justamente a existência de limites rígidos ao exercício do poder (princípio da legalidade estrita) que devem ser respeitados por todos, além de imposições legais bem delimitadas que vedam o decisionismo.
Diante de tal quadro, permanecem os autoritarismos de sempre no sistema de justiça. No Brasil, ainda é rotina que agentes públicos torturem para obter a confissão de um crime, sem que o Judiciário se oponha, validando este depoimento. É uma prática sistemática (e perversa) para a qual os juízes fecham os olhos , sendo quea maior parte destes torturadores são policiais e agentes penitenciários. Mesmo tendo sido considerada crime hediondo e imprescritívelna CF/88, e tipificada na Lei n. 9.455/97, a tortura ainda é amplamente praticada (e tolerada) no Brasil.
A ideologia da segurança nacional, típica de ditaduras, que trata dissidentes políticos como inimigos, na democracia,se transformou na ideologia da lei e da ordem (defesa social). Como exemplo, a Constituição de 1988 ampliou a atuação dos militares na segurança pública ao prever uma função extraordinária das Forças Armadas na defesa da “lei e da ordem”, ainda que condicionada a autorização de outros poderes (art. 142 da CF/88).Além disso, ainda se admite que tribunais militares possam julgar civis(vide a ADPF n. 289 em tramitação no STF), a prisão preventiva é praticamente obrigatória dos e quando se trata de réus pobres, o depoimento de policiais é considerado como tendo “fé pública” no crime de tráfico , por exemplo, dispensando outras testemunhas. Por fim, apesar da presunção da inocência estar prevista como cláusula pétrea o STF acaba de relativizá-la.
O principal limite ao exercício do poder é formado pelos direitos e garantias fundamentais, verdadeiros trunfos contra a opressão. Sempre que um direito ou garantia fundamental é violado (ou “flexibilizado”) afasta-se do marco do Estado Democrático de Direito. Nada, ao menos nas democracias, legitima a “flexibilização” de uma garantia constitucional, como, por exemplo, a presunção de inocência (tão atacada em tempos de populismo penal, que exige respostas repressivas prontas, populares e rápidas).
Na Alemanha nazista, o führerdo caso penal (o “guia” do processo penal, ou um inquisidor) podia afastar qualquer direito ou garantia fundamental ao argumento de que essa era a “vontade do povo”, por ser necessário na “guerra contra a impunidade” ou na “luta do povo contra a corrupção” (mesmo que para isso fosse necessário corromper o sistema de direitos e garantias) ou, ainda, através de qualquer outro argumento capaz de seduzir a população e agradar aos detentores do poder político e/ou econômico. Basta pensar, por exemplo, nas prisões brasileiras que violam tanto a lei interna quanto os tratados e convenções internacionais ou na “busca da verdade” que, ao longo da história foi o argumento a justificar a tortura, delações ilegítimas e outras violações.
No Brasil, a instrumentalização da Justiça como parte estratégica da repressão, seja de caráter político na ditadura ou populista na democracia “formal”, é a radiografia de um sistema de justiça ainda muito distante de uma democracia em sentido material.
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[1] Mestre e Doutora em Direito. Professora Adjunto IV de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro
[2] Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Professor Convidado da Fiocruz e Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
[3] BATISTA, Vanessa Batista, BOITEUX, Luciana et alli. Justiça autoritária? Uma investigação sobre a estrutura da repressão no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (1964-1985). Rio de Janeiro: Faperj, 2015. Disponível em: http://www.cev-rio.org.br/site/arq/FND-UFRJ-Justica-autoritaria.pdf
[4] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão. São Paulo: Paz e Terra, 2010. Segundo Pereira, “o regime brasileiro usou os tribunais militares em tempos de paz para processar dissidentes e opositores políticos, sem jamais abolir a Constituição” (p. 34), o que nos diferencia de outros países latino americanos como o Chile (cuja ditadura aboliu a Constituição, declarou estado de sítio e executou dezenas de pessoas sem julgamento) e a Argentina e sua “guerra suja” (onde grande parte dos tribunais não se envolvia com a repressão a presos políticos, exceto para negar habeas corpus e servir como camuflagem para o terror, com altíssimo número de desaparecimentos e execuções extrajudiciais).
[5] BATISTA, BOITEUXet alli (Coord.) (2015),op cit.
[6] BARCELLOS, Daniela Silva Fontoura de, CORRE^A, Gabriel Bernardo. Monitoramento e repressão aos juízes auditores na ditadura civil-militar brasileira. In: Memória, Verdade e Justiça de Transição. CONPEDI/UFPB. Florianópolis: CONPEDI, 2014. p. 241-161.
[7] JESUS, Maria Gorete Marques de, CALDERONI, Vivian (2015). Julgando a Tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010). São Paulo. Disponível em: http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Julgando%20a%20tortura.pdf - Acesso em 04.08.15.
[8] A Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em relação à validade das provas testemunhais considera que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Vide LEMGRUBER, Julita et al (Coord). Tráfico de Drogas na Cidade do Rio de Janeiro: Prisão provisória e Direito de Defesa. Disponível em: http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2015/10/Boletim-Trafico-de-drogas-epresos-provisórios.pdf
[9] No Habeas Corpus n. 126.292, em fevereiro de 2016, o STF considerou que o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência.
Originalmente publicado em CLACSO - MEGAFON - "Perdiendo el Juicio en America Latina" http://www.clacso.org/megafon/index.php
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