sábado, dezembro 03, 2011

Espantem o abutre



* Crônica de Mario Marcos, que ganhou 2o lugar no Prêmio ARI 2011

Sempre que vejo imagens dos haitianos devastados pela cólera, poucos meses depois de um terremoto que arrasou com a pouca estrutura do país, lembro de um sul-africano chamado Kevin Carter (1960 – 1994). Um dia, ao caminhar perto de uma vila no sul do miserável Sudão, Carter teve sua atenção despertada pelo som de uma criança choramingando. Viu a menina e percebeu que ela tinha se abaixado para um rápido descanso da caminhada entre sua casa e um centro de alimentação. Carter preparou sua máquina e ficou ali, à espera de um ângulo para fotografar a menina. Fez isso depois de 20 minutos – e sua foto entraria para a história como uma das mais chocantes e impactantes da África. Ela mostra a criança abaixada, em primeiro plano, e ao fundo um abutre. O impacto da foto está em sua mensagem subliminar: não se sabe se o abutre está à espera da menina ou apenas atraído pelo lixão do local.

Carter esperou 20 minutos porque tinha esperança de que a ave abrisse suas asas, mas diante da demora clicou assim mesmo. A foto foi vendida ao The New York Times e publicada em 26 de março de 1993. A repercussão foi arrasadora. Durante toda a noite, as linhas telefônicas do jornal ficaram congestionadas por pessoas aflitas, que queriam saber se a menina tinha sobrevivido – e se Carter espantara o abutre. Sim, respondeu o jornal, o fotógrafo afastou a ave e, mesmo que não o fizesse, a menina ainda tinha forças para completar a caminhada até o centro de alimentação. O jornal só não sabia dizer o que acontecera com a criança depois da foto. Um ano mais tarde, Carter ganhou a distinção mais cobiçada de fotografia, o Prêmio Pulitzer por Recurso Fotográfico, na Universidade de Colúmbia, em Nova York. Naquele mesmo ano, ele dirigiu até um local de sua infância, desviou a mangueira do escapamento para o interior do carro e se suicidou.

Conta a lenda que o trauma pela foto o levou a isso, mas havia mais problemas atormentando o fotógrafo. Em um bilhete de despedida, ele revela que estava sem dinheiro, sem telefone, sem amigos e castigado por lembranças de “assassinatos, cadáveres, raiva e dor”.

Nos 15 meses entre a foto no Sudão e o suicídio, Carter sofreu com as críticas e o debate do velho dilema do fotógrafo: fazer logo o registro ou interferir no fato? Nem sua garantia de que espantou o abutre serviu para acalmar os críticos. Por que a foto causou tanto impacto e rejeição a Carter? Todos conhecem a miséria da África, todos acompanham há muito tempo histórias de crianças mortas de fome e sede em países como o Sudão, por que então a foto escandalizou tanto? Simples: é que todos se viram ao lado de Carter, olhando pelo visor da máquina. Ao apertar o disparador, ele trouxe a miséria para dentro da casa de cada um – e poucos o perdoaram por isso. Talvez muitos tenham ajudado a África depois do choque provocado por aquela foto, mas não importa: a dor e a imagem do abutre à espreita abalaram a moral de cada um.

Carter hoje fotografaria o Haiti e seus muitos abutres. Toda aquela comoção da fase do terremoto, a mobilização de artistas e governos, foi reduzindo-se aos poucos. Foi dia 12 de janeiro deste ano, mas dá a impressão de que foi há muito tempo. Em meio à destruição do pouco que tinham, os haitianos agora convivem com a cólera, que surge exatamente desta miséria em que vivem. Há representações de países trabalhando por lá, mas o esforço é quase nada comparado ao que o mundo poderia fazer. É que o impacto, neste mundo de informação rápida, costuma durar apenas 48 horas, como disse o promotor americano a uma repórter condenada por não revelar sua fonte, no filme Nada mais que a Verdade. As 48 horas do Haiti já passaram – e poucos se oferecem para afugentar o abutre.

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