Ouça, Fidel tem algo a nos dizer
O percurso de Fidel Castro foi tão intenso que por muito tempo será como se continuasse por aqui.
Sua relevância vincula-se à da ilha na qual lutou como um leão para provar que certas ideias pertenciam ao mundo através da ação.
Deixar uma obra inconclusa, porém não derrotada, em disputa, foi sua maior vitória. Num tempo em que a utopia perdeu o seu horizonte de transição, Fidel ergueu pilares de uma ponte inconclusa, mas não derrotada, que dialoga com nossos desafios e hesitações.
Cuba ainda magnetiza, a ponto de ostentar uma estatura geopolítica dezenas de vezes superior ao seu tamanho demográfico e territorial.
Ali, mesmo ameaçada por escombros, pulsa a ideia de um mundo novo e fraterno. Enquanto essa pulsação respirar em nós, Fidel será relevante.
Para começar, digamos aos céticos que não é comum que um país tenha seu nome imediatamente associado, em qualquer lugar do mundo, a sinônimo de audácia, soberania e justiça social.
Tampouco é trivial uma nação ser confundida com a legenda da bravura e da resistência heroica ao imperialismo predador e desumano por mais de meio século.
Todas essas exceções viram regra quando as letras se juntam para formar a palavra Cuba, imediatamente associada a outra, ‘Fidel’.
A pequena ilha do Caribe, na verdade um arquipélago de 4.195 restingas, ilhotas e ilhas, soma um território de apenas 110 861 km² (pouco maior que o de Santa Catarina).
Os cubanos formam um povo de 11,2 milhões de pessoas.
Cuba, porém, está a léguas de ser uma simples ocorrência ensolarada no cardume das pequenas nações.
Por uma razão que ela transformou em referências desde 1959: ali se experimenta uma outra organização da sociedade humana, alternativa à fundada na exploração, no consumismo e no individualismo.
Esse reduto desassombrado acaba de agregar um novo epíteto ao seu trunfo: Cuba é considerada a experiência social e econômica mais próxima daquilo que se almeja como sociedade ambientalmente sustentável no século XXI.
É assim que a lendária ilha do Caribe se agiganta no concerto das nações: sendo a ponta de lança da humanidade em muitas frentes.
As quatro letras de seu nome condensam um dicionário de experiências, de esperanças, de vitórias, de tropeços, de lições e de problemas no caminho da construção de uma sociedade mais justa e convergente.
Depois do desmoronamento do mundo comunista, tornou-se a mais longeva e atribulada experiência no gênero trazida do século XX para o XXI.
Isso faz dela essa ponte de múltiplas conexões que singularizam e magnificam a sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu horizonte de transição.
Ao mesmo tempo em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.
Os picos de desigualdade no capitalismo, o ocaso ambiental da humanidade, e tudo o que isso denuncia em relação às formas de viver e de produzir em nosso tempo, são uma evidência dessa teimosa pertinência.
Tome-se o caso dos EUA, para deliberadamente radiografar o cenário mais favorável da opulência produzida pelo capital.
Os perdedores do sistema compõem um contingente grande o suficiente, e desesperado a um ponto que se desconhecia, que um semi-fascista acaba de ser eleito por eles com a promessa de acudir uma aflição sem resposta nos mecanismos convencionais do mercado.
Nunca a desigualdade foi tão aguda. Jamais a probabilidade de que ela solape as bases da sociedade foi tão presente.
Não é Fidel Castro quem o diz.
A advertência foi feita em 2015 pela contida presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, Janet Yellen.
Os abismos sociais no núcleo central do capitalismo atingiram o ponto em que, segundo a discreta Yellen, os americanos deveriam se perguntar se isso é compatível com os valores dos Estados Unidos.
Em uma conferência em Boston, a presidente do Fed informou que os níveis de desigualdade nos EUA são os mais altos em um século.
“A desigualdade de renda e riqueza estão nos maiores patamares dos últimos cem anos, muito acima da média desse período e provavelmente maior que os níveis de boa parte da história americana antes disso”, afirmou.
Cuba não poderia ser tomada como um contraponto histórico a esse espiral.
A ilha jamais concluiu a transição para onde decidiu caminhar em 1960.
Tangido pela truculência imperial norte-americana, Fidel Castro proclamou, então, a natureza socialista e marxista do governo.
Um ano antes havia derrubado a ditadura de Fulgêncio Batista e iniciara uma reforma agrária que intensificou a guerra da elite local e estrangeira contra o novo regime.
Cuba nunca se propôs a ser um modelo.
Desde o início foi uma aposta.
De olhos voltados para o relógio da história.
Quem já não ouviu a velha glosa segundo a qual ‘se não existe socialismo em um só país, quanto mais em uma só ilha’?
Nem os irmãos Castro, nem Che, nem nenhum dos pioneiros que desceram de Sierra Maestra para tomar o poder no réveillon de 1959 imaginavam desmentir esse interdito estrutural.
A aposta alternativa, porém, tampouco se consumou.
Um punhado de golpes de Estado sangrentos e preventivos que tiraram a vida de milhares de pessoas e seviciaram um contingente ainda maior em toda a América Latina, fizeram dos anos 60 e 70 um cinturão profilático em torno da grande esperança cubana.
Todas as artérias que poderiam misturar seu frágil metabolismo ao corpo vigoroso de uma integração regional progressista latino-americana foram cirurgicamente seccionadas.
Lembra algo em curso no continente nesse momento?
Não é uma miragem. É uma tranca da história que nunca se recolheu de fato.
A ação conjunta das elites, da mídia e dos exércitos, das federações empresariais, dos judiciários carcomidos de ideologia conservadora, dos partidos conservadores orientados e auxiliados pela mão longa do Departamento de Estado e da CIA, foi e é implacável.
Cuba é o limite da resistência a isso. Razão pela qual parece agonizar permanentemente. Mas, ao mesmo tempo, resistir.
Durante meio século o cerco asfixiante –que teve no embargo econômico iniciado em 1962 a sua fivela mais arrochada-- não cedeu.
A obsessão conservadora contra a aposta cubana, símbolo de múltiplas transgressões em relação aos valores e interesses das plutocracias regionais, ficou comprovada mais uma vez nas eleições presidenciais brasileiras de 2014 .
Em um dos debates mais virulentos da campanha, o candidato conservador Aécio Neves, que derrotado passou a operar o golpe ora no poder, trouxe a ilha para o palanque.
O tucano acusou o governo da candidata à reeleição, Dilma Rousseff, de cometer duas heresias do ponto de vista do cerco histórico à audácia caribenha.
A primeira, o financiamento de US$ 802 milhões para a construção de um porto estratégico de um milhão de containers na costa cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida.
A obra, capaz de transformar Cuba em uma intersecção relevante do comércio entre as Américas, foi denunciada por Aécio como evidência de cumplicidade com o castrismo.
Mariel se somou a uma ampla parceria na área da saúde, igualmente bombardeada. Através dela, mais de 11 mil médicos cubanos ingressaram no país, onde asseguram assistência a 50 milhões de pessoas.
O programa Mais Médicos, que levou doutores cubanos a lugares onde profissionais brasileiros não querem trabalhar, é um dos alvos do desmonte social em curso no Brasil assaltado pelo golpe de Estado de 31 de agosto que uniu a mídia à escória, ao dinheiro grosso e ao judiciário dos juízes de exceção.
O reatamento das relações diplomáticas entre EUA e Cuba –em águas incertezas, após a vitória de Trump-- trincou as patas desse discurso.
A calculadora política do conservadorismo opera –e age-- ancorada na certeza ideológica de que a ‘ilha’ é apenas uma ditadura enferrujada, falida, desmoralizada e fadada à reconversão capitalista.
Jamais uma fonte de lições ao regime de mercado ou aos limites da democracia tolerada pelo capital.
Cambaleante, servia à demonização de qualquer traço de planejamento econômico que viesse afrontar a proficiente autorregulação dos mercados.
Morta, jogaria a pá de cal nos resquícios estatistas e socializantes teimosamente colados à tradição da esquerda latino-americana.
O vaticínio sincronizou o tempo de vida do regime ao do metabolismo de Fidel Castro –cujo epílogo antecipado foi tentado inúmeras vezes pela CIA e fracassou.
Paciência. Sua morte, finalmente concretizada, é esse o diagnóstico da grande Miami instalada na alma das elites locais, fará a implosão do regime diante da qual os agentes e os mercenários tropeçaram, desde a desastrosa tentativa de invasão da baía dos Porcos, em abril de 1961.
A impressionante resistência daquilo que se imaginava mais frágil do que tem se mostrado ingressa, a partir deste 26 de novembro de 2016, num período novo, mas dificilmente de fastígio das previsões conservadoras.
Em edição de 2014, a revista New Left Review arrolou dados interessantes sobre a resiliência da frágil sociedade cubana diante da dupla adversidade imposta pelo embargo americano e o fim do apoio russo, após o esfarelamento do bloco comunista.
No momento em que toda a América Latina, o Brasil à frente, depara-se com uma encruzilhada histórica encharcada de regressão, é inescapável a atualidade da lição de luta e desassombro embutida nessa travessia.
Por maior que tenha sido a rigidez política de que se acusa o regime –e até por conta da explosão que esse fator unilateral acarretaria-- Cuba só não virou pó graças a três fatores: planejamento público, à organização social, consciência política de amplas camadas de sua gente.
Não se trata de mitificar um caso de custo humano e social elevadíssimo.
Mas de enxergar na experiência extrema da adversidade, o alcance mitigador da variável política, reafirmada no reatamento diplomático norte-americano.
Nesse sentido, o retrospecto da épica luta do povo de Cuba fala aos nossos dias e à realidade que constrange as forças progressistas brasileiras
Ao contrário da presunção que vê no degelo que precedeu a morte de Fidel o atalho da conversão capitalista tantas vezes frustrada, a resistência pregressa enseja outras esperanças.
O discernimento político e social acumulado pela sociedade cubana figura talvez como o mais experimentado laboratório de ponta da história para resgatar o elo perdido do debate latino-americano sobre a transição para um modelo de desenvolvimento mais justo, regionalmente integrado, cooperativo, democraticamente participativo e sustentável.
Se a morte de Fidel –assim legada por ele como mais uma aposta política-- desmentir a derrocada desses valores, dará inestimável contribuição para fixar o chão firme capaz de desenferrujar a alavanca histórica.
Não é pouco.
E pode ser muito do ponto de vista do imaginário e da agenda regional, assediados no momento pelo coro diuturno da restauração neoliberal.
A épica sobrevivência da pequena ilha, cuja morte anunciada era um poderoso trunfo conservador, expõe heroicamente a chance de se quebrar a rigidez das circunstâncias econômicas com o peso dos interesses históricos da maioria da população (leia editorial http://cartamaior.com.br/…)
Isso confere algum otimismo para brindar o final de 2016 como um horizonte em aberto na história brasileira e latino-americana.
Nenhuma experiência em marcha reúne mais provações e adversidades que aquelas afrontadas e vencidas por Cuba.
Alguns tópicos do retrospecto criterioso feito pela New Left Review comprovam isso.
1. Ao perder o apoio russo nos anos 90 e diante da ‘teimosa recusa’ em embarcar em um processo de liberalização e privatização, a "hora final" de Fidel Castro parecia, finalmente, ter chegado;
2.Cuba enfrentou o pior choque exógeno de qualquer um dos membros do bloco soviético, agravado pelo saldo do longo embargo comercial norte-americano;
3.A dramática recessão iniciada em 1990 exigiria uma década para restaurar a renda real per capita anterior à derrocada do mundo comunista;
4. Sugestivamente, porém, Cuba saiu-se melhor em termos de resultados sociais, comparada às economias do bloco comunistas atingidas pela mesma borrasca e ancoradas em uma base econômica até mais sólida;
5. A taxa de mortalidade infantil em Cuba, em 1990, foi de 11 por mil, já muito melhor do que a média no leste europeu; em 2000 ficaria ainda abaixo disso, apenas 6 por mil, uma melhora mais rápida do que a verificada em muitos países da Europa Central que haviam aderido à União Europeia;
6. Hoje, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é de 5 por mil ; um desempenho superior ao dos EUA, segundo a ONU, e muito acima da média latino-americana;
7. Não só. A expectativa de vida da população cubana aumentou de 74 para 78 anos na década de 90 --mesmo com a ligeira alta das taxas de mortalidade entre grupos vulneráveis nos anos mais difíceis;
8. Hoje, após 55 nos de embargo e 26 de fim do apoio russo, a ilha ostenta uma das expectativas de vida mais altas do antigo bloco soviético e de toda a América Latina;
9. Não se subestime as terríveis privações, o custo humano, econômico e político cumulativos. A solitária busca de uma luz em um túnel claustrofóbico, década após década, cobrou um preço alto do povo cubano;
10. A superlativa dependência da economia em relação às exportações de açúcar para a Rússia era proporcional ao estrangulamento da estrutura produtiva decorrente do bloqueio norte-americano—um garrote estava ligado ao outro, em dupla asfixia;
11. A conta só fechava graças a uma cotação preferencial paga pelo Kremlin: uma libra de açúcar enviada à Rússia gerava US$ 0,42 em receitas a Havana; cinco vezes a cotação mundial do produto (US$ 0,09);
12. Até a derrocada do bloco comunista, as importações cubanas equivaliam a 40% do PIB; delas dependiam 50% do abastecimento alimentar da população e mais de 90% do petróleo consumido. Era um pouco como o superciclo de commodities que ao se esgotar desencadeou as pressões políticas e econômicas afloradas agora na América Latina e no Brasil;
13. Mesmo com o ‘superciclo do açúcar’, o déficit comercial cubano de US $ 3 bilhões tinha que ser refinanciado generosamente pela União Soviética;
14. Essa rede de segurança se rompeu abruptamente em janeiro de 1990 e sumiu por completo há 23 anos. As receitas propiciadas pelo açúcar cairiam em 79%: de US $ 5,4 bilhões para US $ 1,2 bilhão. As fontes de financiamento externo que mitigavam o embargo americano evaporaram;
15.Washington viu aí a oportunidade de bater o último prego no caixão de Havana, como se fez aqui, com o golpe. As sanções e represálias comerciais e financeiras contra países e instituições que facilitassem o acesso de Cuba ao crédito comercial foram acirradas. Deu certo: enquanto nos países do leste europeu, a transição pós-Muro (1991-1996) amparou-se em um fluxo de crédito externo da ordem de US$ 112 dólares per capita/ano, em Cuba esse valor foi de US$ 26 dólares per capita/ano.
16. O resultado foi um dramático cavalo de pau no comércio exterior: Cuba caiu de uma das taxas de importações mais altas do bloco comunista (de 40% do PIB), para uma das mais baixas (15% do PIB). Todas as tentativas de Havana de diversificar e ampliar seu leque de exportações esbarravam no embargo norte-americano.
Alguma surpresa pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca de serviços médicos e sociais?
17. Ainda assim, a penúria foi de tal ordem, que o manejo puro e simples do racionamento não explica a sobrevivência do regime;
18. Quando o ferramental econômico já não respondia mais e patinava em círculos, Havana viu-se diante de duas escolhas: render-se ao lacto purga ortodoxo (como está sendo imposto ao Brasil) e rifar a ilha numa apoteótica rendição capitalista, ou apostar no seu derradeiro trunfo: a resposta coletiva liderada pelo Estado, ancorada em uma longa tradição de planejamento, mobilizações de massa, debate popular e participação direta da sociedade nas tarefas nacionais;
19. A opção escolhida instalou uma rotina de prontidão na ilha, como se a população vivesse permanentemente na antessala de uma catástrofe natural em marcha;
20. Cortes ensaiados em serviços essenciais treinavam a sociedade para a defesa civil em mobilizações coordenadas envolvendo fábricas, escritórios, residências, escolas, hospitais;
21. A segurança alimentar básica foi planejada com disciplina férrea e mantida em condições de escassez extrema;
Cuba soçobrou, gemeu, contorceu-se e acumulou recuos.
O regime recorreu às forças extremas de sua organização política e social para enfrentar restrições equivalentes às de uma guerra, que se estende por meio século, a mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.
Mas a sociedade não se desmanchou, nem se rendeu.
Sem ilusões.
Cuba continua a ser uma construção inconclusa, que independe de suas próprias forças para se consumar.
Como tal, enseja debate, comporta retificações e, sobretudo, cobra agendas desassombradas – e não apenas em Havana.
O reatamento das relações diplomáticas com os EUA, por exemplo, poderia ser um acelerador desse processo.
A morte de Fidel, ao contrário da rendição inapelável prevista nos prognósticos conservadores, pode levar a ilha a surpreender de novo, ao não sucumbir à fatalidade tantas vezes anunciada.
Mas se mantendo como uma ponte inconclusa, a cobrar de outros povos e nações a
reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária no século XXI.
O ano de 2016 está sendo muito, muito duro com a esperança progressista brasileira e latino-americana.
Mas foi muito mais dura por 55 anos com a esperança cubana.
Fidel e sua gente não desistiram.
Ao contrário: ‘Não há um átomo de arrependimento em mim’, dizia.
Obrigado, companheiro Fidel, por esse legado.
Agora é a nossa vez,
‘Hasta la victoria, siempre!
fonte CARTA CAPITAL